domingo, maio 20, 2007

Cruz Vermelha pedia cigarros para dar aos soldados

FERNANDO MADAÍL

Politicamente correcto, em 1962, era o administrador da Tabaqueira, Jorge de Mello, concordar "em oferecer à Cruz Vermelha Portuguesa, com destino aos soldados que se encontram em Angola e, nomeadamente, aos que combatem os terroristas nas regiões do Norte daquela província ultramarina, os primeiros cigarros produzidos" na nova fábrica de Albarraque (Sintra). Politicamente correcto, em 2007, é criticar a Cruz Vermelha por então ter incentivado o tabagismo, mesmo entre esses soldados que podiam regressar de caixão, ficar estropiados ou serem vítimas do que hoje se designa por stress pós-traumático.

A inauguração em 1962 da nova fábrica da empresa fundada, em 1927, por Alfredo da Silva e que é agora uma subsidiária da multinacional Philip Morris International teve direito a grande pompa. "Constituiu um acontecimento de extraordinário relevo, pela categoria das personalidades, pelo número e qualidade das pessoas presentes, pelo brilho de que se rodearam os vários actos do programa e pela reunião social que a encerrou, a inauguração da nova fábrica de A Tabaqueira", escrevia o DN de 27 de Maio de 1962.

Além do Presidente da República (Américo Tomás) e do cardeal patriarca de Lisboa, do presidente da Câmara Corporativa (o parlamento da ditadura) e de cinco ministros, estavam presentes três secretários de Estado e os embaixadores de Espanha, Alemanha e Turquia. Do rol constavam ainda o inspector-geral das Finanças, o governador civil de Lisboa, o presidente da Câmara Municipal de Sintra "e dezenas de individualidades, antigos membros do Governo, representantes de organismos do Estado, dos meios bancários, industriais e comerciais, tantas que impossível se torna mencioná-las".

O título da peça era, contudo, estranho: "Portugal vencerá os seus destinos - Trabalhando, não ouvindo aquilo que não se deve ouvir, passaremos em frente e continuaremos a ser o Portugal que sempre fomos."

Américo Tomás aproveitava a cerimónia no concelho de Sintra para evocar, embora sem nunca citar o nome da colónia, Angola. "É por isso - prosseguiu - que sempre que assiste a inaugurações como aquela, o seu coração se enche de júbilo, fica contente e dá por bem empregados muitos momentos de tristeza que os tempos modernos lhe fazem viver. A época, insistiu, é muito difícil, e é muito difícil, sobretudo, para os portugueses. Há uma incompreensão geral para os seus problemas e, no entanto, os seus problemas são fáceis e são correctos."

O "problema" era a guerra em Angola, iniciada no ano anterior, depois do MPLA ter atacado a casa de reclusão, o quartel da PSP e a emissora de rádio em Luanda e da UPA iniciar os massacres no Norte. A "incompreensão geral" perante a resposta, "rápida e em força", de Salazar até fez com que americanos e soviéticos coincidissem, pela primeira vez, no mesmo voto, aprovando a moção do Conselho de Segurança da ONU que condenava Portugal. Nos anos seguintes, com o alastrar da Guerra Colonial à Guiné (1963) e a Moçambique (1964), "problemas" e "incompreensão" aumentariam.

Mais curioso era ler que o então ministro das Finanças, Pinto Barbosa, explicava que a "capacidade de laboração [é] de molde a satisfazer as necessidades do consumo, ainda que estas venham a desenvolver- -se com a exportação e a expandir-se com o [melhor?] nível de vida".

Afinal, confrontando o discurso dos políticos tabagistas de antanho e dos tribunos antifumo de agora, o melhor é escutar a personagem de Tchékhov que vai proferir uma conferência e nunca chega a falar sobre o tema - a peça é Os Malefícios do Tabaco.
Sábado, 19 de Maio de 2007
Diário de Notícias - Portugal

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