DESAFIO DO BOM CIGARRORevista Veja, 22 de Janeiro de 1969Dois vícios tiveram de ser combatidos
pela primeira fábrica de cigarros de papel do Brasil, instalada no Rio em
1903, a Souza Cruz. Eram o cigarro de palha, preferido nas classes populares, e o rapé, a moda entre os elegantes. Hoje, porém, a indústria brasileira de cigarros, que dá ao Govêrno um oitavo de sua receita anual - NCr$ 1,5 bilhão -, depende, para expandir-se, não da mudança de hábitos, mas da manutenção de um hábito já estabelecido: o de fumar cigarros de tipo americano. A Souza Cruz (British-American Tobacco), que vende 3 bilhões e 300 milhões dos 4 bilhões e 250 milhões de maços fumados no Brasil anualmente, já lançou o Hilton em São Paulo e no Rio e já fabrica no Brasil o Pall Mall e o Lucky Strike (segunda e oitava marcas no mercado americano), à venda em Curitiba e Salvador, e o Viceroy (décima marca americana), lançado em Natal e no Recife. A Flórida de Cigarros (Liggett & Myers, grupo americano), segunda emprêsa do Brasil, com 330 milhões de maços por ano, que na categoria de filtro tem o Orleans, vai lançar depois de março o Chesterfield com e sem filtro, o cigarro que mais vende no mundo, com 3,5 bilhões de maços por ano. Mas o Chesterfield é um cigarro médio tipo Continental. Já brigam na área refinada do filtro os gaúchos Califórnia, da Santa Cruz de Cigarros (Reentezma Zigaretten, grupo alemão), e Monroe, da Sinimbu, e o London, da Tabacaria Londres. E a Philip Morris, segunda companhia dos Estados Unidos, que até o fim do ano terá terminado a fábrica que está montando no Brasil e há três anos tem plantações de fumo no Rio Grande do Sul, já está fazendo anúncios, em jornais, revistas e TV, do Benson & Hedges e do Marlboro.
Tradição e juventude - Qual é o mercado para tantos cigarros? É um mercado jovem - nos últimos anos os rapazes e môças que começam a fumar aos dezesseis ou dezessete anos preferem experimentar o cigarro de filtro a enfrentar o cigarro mais forte. É um mercado saudável - hoje os brasileiros fumam 1 bilhão e 410 milhões de maços de cigarros com filtro por ano, um têrço do total, e a tendência, por temor ao câncer, é aumentar essa proporção. É também um mercado feminino - de quinze anos para cá, a porcentagem de mulheres que fumam aumentou dez vêzes e elas rejeitam os cigarros "próprios para mulheres", como o já extinto Pink, de filtro côr-de-rosa e papel com gôsto de chocolate. Mas é, principalmente, um mercado tradicional - dos fumantes que preferiam o cigarro importado, isto é, contrabandeado. O diretor da Fiscalização de Rendas Aduaneiras, Josberto Romero de Barros, calcula que os brasileiros fumam 60 milhões de maços contrabandeados por ano, que renderiam para o Govêrno, se pagassem impostos, 48 milhões de cruzeiros novos por ano, 3,5 por cento do deficit orçamentário da União. Mas Oswaldo Heinen, gerente da União Sul-Brasileira de Cooperativas, que reúne os produtores gaúchos de fumo, afirma que o cigarro americano consumido no Brasil corresponde a 10 por cento da produção de cigarros no País, o que daria 425 milhões de maços contrabandeados por ano.
O grande impulso - De qualquer modo, tôdas as emprêsas aceitam que o grande impulso da fabricação brasileira dêste ano será a disputa do mercado criado pelo contrabando. O preço médio do cigarro americano, com a queima dos cigarros contrabandeados promovida pelo Govêrno, subirá 7 cruzeiros novos, muito mais do que o máximo que pode ser cobrado por um cigarro nacional do mesmo tipo. No Brasil, o Ministério da Fazenda estabeleceu treze categorias de preços, que vão de NCr$ 0,50 a NCr$ 1,40. Em qualquer categoria, 66,07 por cento do preço serve para pagar ao Govêrno Federal o Impôsto sôbre Produtos Industrializados; 5,77 por cento vai para os governos estaduais e municipais - é o Impôsto sôbre Circulação de Mercadorias; 9,46 por cento fica com o varejista; 15,7 por cento representa o custo de fabricação do cigarro; e 3 por cento é o lucro da fábrica. Como tôdo êsse pêso dos impostos, o Benson & Hedges nacional ainda ficará quatro ou cinco vêzes mais barato do que o americano. Mas os consumidores que se acostumaram ao cigarro contrabandeado não perceberão nenhuma diferença? Segundo o presidente do Instituto Baiano do Fumo, Adolfo Gonçalvez Lôbo, fumar cigarro americano hoje em dia "é pura esnobação de brasileiro". Até a Segunda Grande Guerra, o cigarro americano era mais suave do que o brasileiro, pois aqui ainda não havia processos de aromatização. Hoje, não há nenhuma diferença. Diz entretanto Sidney de Carvalho, da Sudan, de São Paulo: "Quando a carteira do cigarro americano disser 'fabricado no Brasil', os esnobes deixarão de fumá-lo".
O sabor e o aroma - Na verdade, todo cigarro nacional ou estrangeiro não passa de uma mistura de fumo de estufa com fumo de galpão, que toma um banho de vapor e se transforma num melado em que entram alcaçuz, açúcar, cacau e substâncias químicas; depois é picado, enrolado em papel e cortado, para receber ou não um filtro e ser colocado em maços, pacotes e caixas. Tudo é feito por máquinas nas 25 emprêsas nacionais e as máquinas, iguais às estrangeiras, são fabricadas no Brasil. A Philip Morris só vai importar algumas peças do laboratório químico. Também não há diferença na matéria-prima. Todo o fumo brasileiro para cigarros é produzido no Rio Grande do Sul, onde se colhem por ano 750 mil fardos de 750 quilos cada um. Dêsse total, 650 mil fardos são de fumo de estufa, claro, fraco, aromático, de sabor adocicado, com pouca nicotina e muito açúcar - é o que dá aroma ao cigarro. E 100 mil fardos são de fumo de galpão, escuro, forte, com cheiro de fumo de corda, rico em nicotina e proteínas - é o que dá sabor. Quanto maior a proporção de fumo de estufa, mais fraco é o cigarro. O Rio Grande do Sul produz duas variedades de fumo de estufa - 550 mil fardos de fumo amarelinho gaúcho e 100 mil fardos de fumo Virgínia - e duas variedades de fumo de galpão - 90 mil fardos do galpão tradicional e 10 mil fardos de fumo Burley. O cigarro brasileiro médio, como o Continental ou o Mistura Fina, que alcança 240 milhões de maços anuais, são misturas do fumo amarelinho gaúcho com o fumo de galpão tradicional. E o Hilton brasileiro, como o Benson & Hedges americano ou qualquer cigarro de maior preço, é uma mistura de fumos Virgínia e Burley.
Cigarros à venda - Qual a diferença então entre os cigarros? É, em parte, uma questão de prestígio. A esmagadora maioria das pessoas, com exceção quase apenas dos experimentadores profissionais das fábricas, não conseguiria distinguir, fumando de olhos vendados, sua marca preferida de outra da mesma categoria. No entanto, a pessoa continua preferindo a sua marca, levada pela propaganda ou pelo costume. Porém, mais importante do que isso é a comercialização. A Souza Cruz tem nove fábricas de norte a sul do País, que servem diretamente 200 mil pontos de venda em todo o Brasil. Nenhuma outra emprêsa tem uma rêde de distribuição tão extensa e em tôdas as categorias os seus cigarros se impõem. Mas a Sinimbu gaúcha conta com 30 mil pontos de venda, na maioria concentrados no interior do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. E nessa região, no campo e nas cidades menores, o seu cigarro Hudson, dentro da linha do cigarro médio, é mais vendido do que qualquer outro de qualquer categoria. No Nordeste, porém, 95 por cento do mercado é da Souza Cruz. Nem só por isso se distingue o mercado nordestino. Lá o cigarro de filtro representa menos de 10 por cento das vendas e o Hollywood-filtro vende mais do dôbro do que vende o Minister, o cigarro de filtro de mais saída no Sul. Lá também ainda existe a venda do cigarro por unidade (cada Minister vale NCr$ 0,10). E da Bahia para cima não se encontra, em nenhum lugar, o Luís XV, cigarro importante no Sul. Nem tôdas as fábricas da Souza Cruz produzem todos os cigarros Souza Cruz. No Recife e em Salvador só há produção de Kent, Astória, Capri, Hollywood e Continental sem filtro e Gaivota, que só se vende no Nordeste; Carlton, Minister, Hollywood-filtro e Cônsul são importados do Rio.
Outro mercado - Além dos fumantes de cigarros de filtro de maior preço, existe um outro mercado que as fábricas podem disputar: o dos que ainda hoje não fumam cigarros de papel. Uma pesquisa de uma fábrica nacional indicou que os brasileiros fumam por ano perto de 1 bilhão e 400 milhões de maços de cigarros de palha; acrescentando-se a isso os que mascam fumo de corda, se teria um número de fumantes que a indústria não atinge igual ao número atual de fumantes de cigarros de papel. Mas, no futuro previsível, as fábricas deverão mesmo disputar os fregueses dos cigarros de filtro, que já têm poder aquisitivo. Já se sabe, que o destino do cigarro forte está selado. Em todos os lugares em que o nível de vida das classes mais populares tem crescido, a tendência é sempre ignorar os cigarros mais fortes - de NCr$ 0,50 ou NCr$ 0,60 - e passar sem transição do cigarro de palha para o cigarro médio, como aconteceu com o Continental em todo o Nordeste e nas cidades maiores do Sul e Centro-Sul, e com o Hudson no interior do Sul.
O futuro do fumo - Do ponto de vista dos produtores, tôda essa luta pelo mercado nacional tem um interêsse apenas relativo. A Bahia só produz fumos para charuto, e exporta quase tudo o que produz. No Rio Grande do Sul, se bem que os produtores estejam satisfeitos, pois os cigarros contrabandeados terão de ser substituídos por cigarros produzidos com fumos de lá, a produção maior é com a exportação. Uma das três emprêsas gaúchas, a Goldbeck (Koch Sheltma, grupo holandês), suspendeu a fabricação e só exporta; outra, a Santa Cruz, exporta fumo de galpão para a Polônia, que vende fumo de estufa para a fábrica da Reentzma, em Hamburgo. Os soviéticos e os suíços não importam mais fumo gaúcho porque a carga era sempre pior do que as amostras. Se, porém, os produtores estão mais preocupados com outras coisas, a luta pelo mercado de cigarros de filtro refinados no Brasil interessa não só às grandes emprêsas e às agências de propaganda. Mas principalmente ao Govêrno, que no fim de contas leva dois terços do dinheiro.