A capital do estoura-peito
Brasília vira ponto de distribuição para a máfia de cigarros falsificados e contrabandeados. Mais de 40% dos produtos são ilegais
Victor Martins
Publicação: 18/07/2010 09:34
A máfia do cigarro tem dominado o comércio no Brasil. Com tentáculos no Judiciário, na polícia e em outras esferas do poder público, atua quase impunemente e faz a Receita Federal amargar prejuízos gigantescos. Apenas em 2009, dilacerou os cofres públicos em R$ 2 bilhões — montante de impostos suficiente para erguer 28 hospitais de médio porte ou 40 mil casas populares. A capital do país, planejada para levar o desenvolvimento ao interior do Brasil, tornou-se estratégica para o crime organizado. Como um câncer, a chaga parte do coração para o restante do país. Brasília é o principal ponto de distribuição do tabaco ilegal e, por consequência, o mercado com maior consumo de cigarros piratas. Cerca de 43% do que é vendido no Distrito Federal está irregular.
De acordo com autoridades, a grande dificuldade para o consumidor é diferenciar o produto pirata do original. Muitas vezes, quando se trata de plágio, a aparência é praticamente a mesma. As fraudes são consideradas perfeitas. Em alguns casos, os falsários copiam sistemas de segurança criados pelas companhias regulares. Mas há também o estoura-peito, nome popular do cigarro paraguaio que entra no Brasil sem pagar impostos, como as marcas US, Bollywood, Tigre e Calvert, as mais famosas.
Segundo levantamento feito pela consultoria Nielsen e obtido com exclusividade pelo Correio, grande parte desses produtos clandestinos vem do Paraguai. A principal porta de entrada é o Mato Grosso do Sul. De lá, uma quantidade expressiva chega a Brasília, onde já se criou uma imensa clientela. Quando não recebe produto do contrabando ou da falsificação, aceita também o tabaco roubado. “Não tem crime suficiente para a quantidade de gente que quer esses produtos”, alerta Érito Pereira da Cunha, chefe da Delegacia de Repressão a Roubos (DRR) de Brasília.
Sem hora
O descarregamento ocorre rapidamente. O comum é haver um acordo entre o dono de estabelecimentos e os criminosos. A carga chega sem hora marcada e por menos da metade do preço. Em São Sebastião, região administrativa de Brasília, Wesley Nogueira, dono do supermercado Mega Box, foi preso por receptação do produto roubado. Em 7 de julho, Jader Luciano Santos, proprietário do Supermercado Itatiaia, em Samambaia, teve o mesmo destino de Nogueira: a carceragem da Delegacia de Polícia Especializada (DPE). Ambos revendiam produtos distribuídos pelo crime organizado.
O consumo do cigarro pirata é tão intenso no DF que a Souza Cruz, empresa que mais vende tabaco na capital, está prestes a ser ultrapassada pelo concorrente. Entre 2008 e 2009, a companhia, que detinha 58,7% do mercado candango, perdeu fôlego em meio às baforadas clandestinas e encolheu sua participação para 50,3%. Enquanto isso, no mesmo intervalo de tempo, os ilegais avançaram de 35,2% para 43,6%. “Fica muito difícil competir. Esses cigarros não pagam imposto e são feitos com qualquer tipo de produto”, afirma Paulo Ayres, diretor de Planejamento Estratégico da Souza Cruz.
Concurso
O cigarro pirata no Brasil viciou principalmente o poder público. Segundo o procurador Guilherme Schelb, do Ministério Público Federal em Brasília, a máfia já arrebanhou juízes, integrantes do Ministério Público, policiais e representantes dos poderes Executivo e Legislativo. O crime organizado chega a financiar os estudos de concurseiros para se infiltrar no funcionalismo e representar os interesses ilegais. Os alvos principais são a Receita Federal e as polícias. “Essas organizações são muito voláteis e se auxiliam. Em vários momentos, elas se ajudam porque o crime não é monopólio de ninguém”, afirma Schelb. De acordo com as investigações, o dinheiro da máfia do cigarro também financia armas e até o seu aluguel para assaltos a bancos. Dá ainda suporte a traficantes de drogas e de seres humanos e ao jogo do bicho.
“No DF, a quantidade desses cigarros é grande, porque é rota para outros estados e tornou-se ponto de distribuição”, avalia Ayres. O procurador Schelb concorda e acrescenta São Paulo como outro importante ponto distribuidor. Segundo ele, não existe um único culpado nesse ramo de crime. O cidadão que compra o produto é o maior financiador da máfia e da violência que está atrelada a ela. O poder público também tem sua parcela de débito: quando a burocracia não atrapalha, a omissão e a propina facilitam a impunidade. “Em uma das nossas investigações, descobrimos que uma delegacia inteira em São Paulo trabalhava para o crime organizado”, relata.
Dinheiro
O poder econômico da máfia do cigarro é tão forte que nem mesmo a cadeia é suficiente para impedir que grandes chefões do crime continuem a dar as cartas. O maior nome do ramo é Roberto Eleutério da Silva, o Lobão, considerado o maior contrabandista de cigarros do Brasil. Uma fonte graduada do governo garante que mesmo depois de ter sido apanhado pela Operação Anaconda, em 2003, Lobão continua a dominar o mercado clandestino de cigarros.
Outro grande problema está nas empresas que funcionam por ordem judicial. Sem autorização para aruar devido a dívidas gigantescas com a Receita Federal, essas organizações recorrem a liminares. A maioria delas tem controladores off-shores empresas sediadas em paraísos fiscais. “Eles conseguem operar por ordem judicial, não pagam imposto e a Receita atua tentando derrubar essas liminares”, conta uma fonte graduada do governo. “Eles ganham a curto prazo, sonegando imposto. Protelam os débitos, entrando com recursos em várias esferas do poder público. Lá na frente, a empresa some e não se consegue cobrar, porque os donos estão em paraísos fiscais”, descreve. “Nesse mercado, só tem bandido”, reforça o especialista ouvido pelo Correio.
Paraíso fiscal
A Indústria e Comércio Rei é uma das empresas que funciona com ordem judicial. Apenas 2% do controle são de brasileiros. Uma off-shore com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, a Haulover, detém 49% da organização. Outros 49% são da Richley International, com sede no Uruguai. A dificuldade em encontrar os donos recai no fato de não existir um registro nos países de origem. O proprietário geralmente é aquele que detém o documento de titularidade na mão, em algum paraíso fiscal.
O procurador Schelb explica que a máfia do cigarro tem outras características. Uma delas é produzir marcas falsificadas(1) no Brasil e comercializar os produtos como se fossem paraguaios. Outras organizações produzem para exportação e recebem isenções tributárias para isso. “O problema é que esse cigarro fica no Brasil. Eles tentam ludibriar o fisco com essa manobra”, explica o procurador.
No Brasil, a máfia atua em conjunto com escritórios de advocacia que trabalham para blindar as operações criminosas. Entrincheirados do outro lado, a Receita Federal e o Ministério Público combatem os falsificadores e contrabandistas fechando empresas clandestinas e monitorando fortemente as que usam liminares como escudo.
Contaminação
A máfia do cigarro tem contaminado fortemente o varejo formal. Até o último trimestre de 2009, o volume de tabaco ilegal passou a ser vendido em 47% do comércio. No primeiro trimestre do ano passado, essa porcentagem estava em 40%. Entidades de defesa do consumidor recomendam aos fumantes não adquirirem cigarros em camelôs e de ambulantes. A dica é suspeitar sempre de marcas desconhecidas e de preços baixos demais.